Adorava ser beijado quando cumprimentado. Tinha só
uma exigência. Umazinha só. Coisa pequena mesmo. Que o beijo realmente lhe
fosse dado. Que os lábios da outra pessoa tocassem a pouca carne de seu rosto.
Para
compensar sua magreza natural, só mesmo beijos, muitos beijos, e de quebra
abraços, ainda que viessem do Além. Certa
vez, num jantar de apresentações, a namorada de seu irmão mais velho lhe disse isso
após duas taças de um vinho barato, encarecido pela nacionalidade chilena.
Gostava também
de ser abraçado. Tinha apenas dois pedidos. Que o abraço realmente envolvesse
seu corpo. Que o abraço de preferência fosse dado por pessoas rechonchudas,
gordinhas. Só assim a Providência seria justa consigo, colocando no seu caminho
pessoas cheinhas para reanimar sua magreza de nascença. Coincidentemente, já
que venerava os acasos da vida, esse sempre foi o critério determinante nas
preferências afetivas de seu farto coração.
Mas a ida ao psicólogo tinha sido provocada por um
choque. Não aceitava o cumprimento que uma velha amiga de escola havia lhe dado
quando encontrou com ela na Quitanda de Dona Violeta, no boêmio bairro Rio
Vermelho. Por isso, chegou ao
consultório falando tudo. Antes mesmo que o especialista em mentes lhe perguntasse
sobre o que conversariam hoje, disse: “ “Não
acredito nisso. Será possível? Joana fingiu
ter me beijado. Logo ela, que tinha trocado bitocas comigo quando criança, que
sabia de minhas exigências e que eu nunca resistia à tentação de um beijo
colado no rosto, estalado mesmo, zuadento que nem buzina de caminhão. Antes um
frio aperto de mão. Antes um esticar de sobrancelhas dizendo “olá”. Ou que
fingisse, já que a proposta era fingir, não me conhecer. Achasse que eu, o
velho “Fino de Cadeia”, como era conhecido por alguns amigos que gostavam de
fumaça, estava gordo demais para ser comparado a um fininho de cadeia. Não suportei essa dor. Agora estou aqui nesta
consulta extra.”
O psicanalista, que no cartão profissional dizia
ser freudiano, se atreveu um pouco e
ultrapassou as linhas do tradicional umhummm, geralmente sofisticado por um
vagaroso movimento de cabeça, e perguntou a Alexandre: - o beijo foi típico de
novela?
Sem paciência para curiosas indagações, naturais
de quem se debruça na janela para ver a banda passar, o nosso analisado
respondeu: “não chegamos a esse nível.
Perceba a sutileza. Ela fez que ia me dar um beijo. Inclinou o corpo. Antes, é
verdade, saudou-me alegremente, cantarolando: fininho, fininho, fininho meu! E
depois de se inclinar, quando eu ia sentir o prazer daqueles lábios gordos
tocando a maçã de meu ossudo rosto, deixou uma brecha de vento entre a minha
bochecha e a dela. Quem de longe via acreditava que ali houve um cumprimento
real. Para mim, foi a falência, a bancarrota com ares de civilização
pós-moderna. Até pensei em usar a palavra modernidade. Mas o termo da moda é
pós-modernidade. Senti anos de consideração escoados por um não contato, um não
toque, um nojo ou sei lá o quê encoberto vindo da minha amiga. A intuição me alertara:
um empurrão do vento e eu teria sentido aquela satisfação de garoto, a delícia
de ser calmamente beijado, desavergonhadamente quero dizer.”
- Por que não liga para ela?
- Não. É muita ousadia. No máximo, um e-mail.
- Tá bom, então. O entendimento dessa questão
dependerá exclusivamente de você. Já se foram os 50 minutos. Continuaremos na
próxima sessão.
Alexandre,
que ainda ostentava o porte do suspeito apelido Fino de Cadeia, deu uma cutucada na ira, e vazou na saída, ao
passar pela silenciosa recepcionista, um pensamento natural de quem não se crê
analisado: “não haverá próxima sessão.
Você não sabe de nada, nem dos prazeres nas mínimas coisas. Vai se deitar com seu
amado Freud para ver se ele te “froid” com essa história do prazer fálico. Nos
meus 350 reais não toca mais, meu chefe. Umhummmmmm???? Cinco anos na faculdade
para 50 minutos se revezarem em: “pode ser”, “depende de você”, “pensamento
positivo”, “é o seu ponto de vista”, e tudo mais o que se encontra nos livros
de autoajuda, exceto o umhummmmm. Tá aí. Descobri qual é a desses caras. Os 350
são só pelo umhummmmmm.”
Passadas duas semanas. Traumatizado com o
encontro. Insatisfeito com a sessão. Libertou-se ao enviar um e-mail para sua
antiga amiga, que embora não tivesse o romantismo primaveril das cartas dos
primeiros anos de amizade, soletrava algumas batidas de coração:
“Jô, não
sentir o toque de seus lábios foi demais para mim. Sei que me reconheceu com
muita alegria. Mas onde estava a sua face? Por que não me beijou? Foi o curso
de etiqueta? Nem as atuais senhoras retardatárias da Belle Époque ainda se cumprimentam
assim.”
Em dois minutos a resposta chegou a seu celular: “
Que nada, fininho. Você continua o mesmo, né?! Um magro gorduroso de afetos. Não
sei se percebeu. Fiz uma bariátrica. E ao te reencontrar e ver em você a
magreza que sempre desejei, lembrei com
pêsames que você sempre foi fã das gordinhas. Como entregar o meu rosto
ao seu nessas circunstâncias? A minha solução foi o quase chegar lá. Quase
cheguei a te beijar, mas em compensação te cobri de abraços.”
Continuou tomando sua cerveja. Compenetrado na
mini tela do genial aparelho telefônico, desligado das outras pessoas da mesa,
como se fosse a única gota de chuva a cair do céu, postou a seguinte mensagem:
“Incompreensível mesmo. As pessoas sempre
reinventando formas para não se cumprimentarem.” O ponteiro ainda não tinha
feito o seu movimento circular, e 11 pessoas haviam curtido o comentário. Em seguida, intimou diretamente a gordinha da
mesa ao lado como se ela soubesse de sua tormenta e tivesse uma obrigação
natural de acatar o seu próximo pedido: “Quer me beijar?”. Com o NÃO respondido,
guardou o entendimento há semanas esperado. Não era só uma questão de cumprimento.
Na verdade, a sua primeira ânsia de ser amado ainda não tinha passado. De
repente, o psicanalista voltou ao fim desta história e lhe importunou com uma fria e antiterapêutica solução: E por que então não tomou logo o RIVOTRIL quando percebeu que o pânico
de ser amado voltaria?