segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

FALTOU-LHE A PÍLULA MÁGICA






 Adorava ser beijado quando cumprimentado. Tinha só uma exigência. Umazinha só. Coisa pequena mesmo. Que o beijo realmente lhe fosse dado. Que os lábios da outra pessoa tocassem a pouca carne de seu rosto.

 Para compensar sua magreza natural, só mesmo beijos, muitos beijos, e de quebra abraços, ainda que viessem do Além.  Certa vez, num jantar de apresentações, a namorada de seu irmão mais velho lhe disse isso após duas taças de um vinho barato, encarecido pela nacionalidade chilena.

 Gostava também de ser abraçado. Tinha apenas dois pedidos. Que o abraço realmente envolvesse seu corpo. Que o abraço de preferência fosse dado por pessoas rechonchudas, gordinhas. Só assim a Providência seria justa consigo, colocando no seu caminho pessoas cheinhas para reanimar sua magreza de nascença. Coincidentemente, já que venerava os acasos da vida, esse sempre foi o critério determinante nas preferências afetivas de seu farto coração.  

Mas a ida ao psicólogo tinha sido provocada por um choque. Não aceitava o cumprimento que uma velha amiga de escola havia lhe dado quando encontrou com ela na Quitanda de Dona Violeta, no boêmio bairro Rio Vermelho.  Por isso, chegou ao consultório falando tudo. Antes mesmo que o especialista em mentes lhe perguntasse sobre o que conversariam hoje, disse: “ “Não acredito nisso.  Será possível? Joana fingiu ter me beijado. Logo ela, que tinha trocado bitocas comigo quando criança, que sabia de minhas exigências e que eu nunca resistia à tentação de um beijo colado no rosto, estalado mesmo, zuadento que nem buzina de caminhão. Antes um frio aperto de mão. Antes um esticar de sobrancelhas dizendo “olá”. Ou que fingisse, já que a proposta era fingir, não me conhecer. Achasse que eu, o velho “Fino de Cadeia”, como era conhecido por alguns amigos que gostavam de fumaça, estava gordo demais para ser comparado a um fininho de cadeia.  Não suportei essa dor. Agora estou aqui nesta consulta extra.”

O psicanalista, que no cartão profissional dizia ser freudiano, se atreveu um pouco e ultrapassou as linhas do tradicional umhummm, geralmente sofisticado por um vagaroso movimento de cabeça, e perguntou a Alexandre: - o beijo foi típico de novela?

Sem paciência para curiosas indagações, naturais de quem se debruça na janela para ver a banda passar, o nosso analisado respondeu: “não chegamos a esse nível. Perceba a sutileza. Ela fez que ia me dar um beijo. Inclinou o corpo. Antes, é verdade, saudou-me alegremente, cantarolando: fininho, fininho, fininho meu! E depois de se inclinar, quando eu ia sentir o prazer daqueles lábios gordos tocando a maçã de meu ossudo rosto, deixou uma brecha de vento entre a minha bochecha e a dela. Quem de longe via acreditava que ali houve um cumprimento real. Para mim, foi a falência, a bancarrota com ares de civilização pós-moderna. Até pensei em usar a palavra modernidade. Mas o termo da moda é pós-modernidade. Senti anos de consideração escoados por um não contato, um não toque, um nojo ou sei lá o quê encoberto vindo da minha amiga. A intuição me alertara: um empurrão do vento e eu teria sentido aquela satisfação de garoto, a delícia de ser calmamente beijado, desavergonhadamente quero dizer.”

- Por que não liga para ela?

- Não. É muita ousadia. No máximo, um e-mail.

- Tá bom, então. O entendimento dessa questão dependerá exclusivamente de você. Já se foram os 50 minutos. Continuaremos na próxima sessão.

 Alexandre, que ainda ostentava o porte do suspeito apelido Fino de Cadeia, deu uma cutucada na ira, e vazou na saída, ao passar pela silenciosa recepcionista, um pensamento natural de quem não se crê analisado: “não haverá próxima sessão. Você não sabe de nada, nem dos prazeres nas mínimas coisas. Vai se deitar com seu amado Freud para ver se ele te “froid” com essa história do prazer fálico. Nos meus 350 reais não toca mais, meu chefe. Umhummmmmm???? Cinco anos na faculdade para 50 minutos se revezarem em: “pode ser”, “depende de você”, “pensamento positivo”, “é o seu ponto de vista”, e tudo mais o que se encontra nos livros de autoajuda, exceto o umhummmmm. Tá aí. Descobri qual é a desses caras. Os 350 são só pelo umhummmmmm.”

Passadas duas semanas. Traumatizado com o encontro. Insatisfeito com a sessão. Libertou-se ao enviar um e-mail para sua antiga amiga, que embora não tivesse o romantismo primaveril das cartas dos primeiros anos de amizade, soletrava algumas batidas de coração:
“Jô, não sentir o toque de seus lábios foi demais para mim. Sei que me reconheceu com muita alegria. Mas onde estava a sua face? Por que não me beijou? Foi o curso de etiqueta? Nem as atuais senhoras retardatárias da Belle Époque ainda se cumprimentam assim.”

Em dois minutos a resposta chegou a seu celular: “ Que nada, fininho. Você continua o mesmo, né?! Um magro gorduroso de afetos. Não sei se percebeu. Fiz uma bariátrica. E ao te reencontrar e ver em você a magreza que sempre desejei, lembrei com  pêsames que você sempre foi fã das gordinhas. Como entregar o meu rosto ao seu nessas circunstâncias? A minha solução foi o quase chegar lá.  Quase cheguei a te beijar, mas em compensação te cobri de abraços.”

Continuou tomando sua cerveja. Compenetrado na mini tela do genial aparelho telefônico, desligado das outras pessoas da mesa, como se fosse a única gota de chuva a cair do céu, postou a seguinte mensagem: “Incompreensível mesmo. As pessoas sempre reinventando formas para não se cumprimentarem.” O ponteiro ainda não tinha feito o seu movimento circular, e 11 pessoas haviam curtido o comentário.  Em seguida, intimou diretamente a gordinha da mesa ao lado como se ela soubesse de sua tormenta e tivesse uma obrigação natural de acatar o seu próximo pedido: “Quer me beijar?”. Com o NÃO respondido, guardou o entendimento há semanas esperado. Não era só uma questão de cumprimento. Na verdade, a sua primeira ânsia de ser amado ainda não tinha passado. De repente, o psicanalista voltou ao fim desta história e lhe importunou com uma fria e antiterapêutica solução: E por que então não tomou logo o RIVOTRIL quando percebeu que o pânico de ser amado voltaria?




sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

NA POLTRONA




O amor não tem orientação sexual. Pensou nessa afirmação como quem abraça as bordas do mundo. Os anjos não têm sexos. Lembrou-se dessa frase como quem aprecia “a sorte de um amor tranquilo com sabor de fruta mordida”. Queria dizer, e disse reinventando aquele clichê, que o amor revela todas as orientações sexuais possíveis, inclusive as que surgirão. Era ideia certa isso. Afinal, dois homens se beijaram na porta de entrada do universo XXI. Beijo de canto de boca, com a língua recolhida na discrição. Mas era um beijo entre iguais igualmente a um beijo entre diferentes.  Viu também que, devido a essa novidade greco-romana, a fanfarra abriu o desfile mais cedo. E o bloco dos mascarados foi surpreendido com fantasias de carne e osso, se exibindo na Avenida dos anos, em plena luz do dia, com semblantes reais. Nada a esconder. Não havia porquês. Nova Era. Foi o que o jornal da manhã logo cedinho publicou.

Três mulheres, vestidas de colegiais, fizeram uma ciranda de toques. Rodavam, rodavam, rodavam e, na tontura desejada, sentiram os peitos- seus peitos- eriçados de uma adrenalina lubrificante. Quase se conheceram. Como estavam de costas, um morador que descia as escadas não percebeu a cena. Comentou lá embaixo: - há três meninas brincalhonas no 5º andar.  Enquanto isso, gargalhadas vinham do terraço, onde as parabólicas serviam de hastes para estender a linha do tempo à rede do Universo Paralelo, onde as antigas mães daquelas moças quase entendidas conversavam ardentemente, experimentando uma na língua da outra a bebida mais quente da grande Onda: o prazer. E faziam isso na moral, na limpeza, sem externalidades libertadoras, já que o programa Tolerância Zero não tinha sido autorizado pelo Governo. Foi o que o Pasquim da esquina divulgou na página Cotidiano.

A gente humilde ficou espantada com a notícia. A classe média envaideceu-se ao saber que isso era real. Não fazia parte de um capítulo de minissérie. Que estava sendo protagonista de jornais avulsos, degustada por leitores de diversas ordens morais. Os tarados reclamaram: isso lá é coisa que se publique! Notícia velha, porra! Os abonados foram previsíveis: reuniram-se às 17:00h para debater a notícia sob os fundamentos do Darwinismo Social.

 O estardalhaço coube à mídia internacional. Le monde, New York Times e a BBC News depositaram a verdade nas capas. Foram tão objetivos que fizeram pouco caso da exclamação. Anunciaram: “transexual da década de 30 se torna famoso por prever que no século XXI a humanidade seria reconhecida pelo formato de seu Desejo.” Para a tropicália, nenhuma novidade; desde essa época eles - eles mesmos, sim são eles sim, eles mesmos - se perguntavam: “Eu sou neguinha?”.
O menino escuro estampado na capa do Populacho agradeceu pelo dia de boas vendas. Podia ser visto por muita gente. A fama tinha fornicado sua alma com glória infernal. O menino escuro da banca “Ponto de Referência” também rendeu Graças ao dia – Aleluia, Aleluia, imitando sua cliente religiosa. O almoço estava garantido.

No fim da manhã, ele, o personagem vivo das notícias lidas, o metalingüista profissional, que começou a leitura diária com afirmações sexuais inconvenientes sobre o amor, resolveu dobrar os jornais e, antes de sair da Internet, enviar algumas frases para o espaço dedicado ao Leitor. Pensou também em escrever uma carta de demissão. Mas para quem? Estava aposentado. Ainda assim insistiu por sete minutos nessa ideia. Para ele, a carta seria uma bela forma de expressar sua revolta. Seria como desenrolar espontaneamente aquele mal de infância chamado de língua presa.

Cansado de ler, sentiu que o tempo havia passado. Olhou para a xícara que estava no braço da poltrona e resmungou: merdaaaa, café frio não presta! Quando ia se levantar, uma pergunta colou-lhe a bunda no estofado e, antes que a esposa ouvisse seu segredo, se confessou para o espelho da mobília próxima: Qual a igualdade me perturba mais? Eu e um conhecido ou Eu e a turba bárbara que “pela lente do amor não pode enxergar toda moça em todo rapaz ou vice-versa”

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

IGUAIS: ELES OU ELAS


 
 
Pensam
Desejam-se
Tocam-se
Amam-se
Desta vez, os opostos não se atraem

Afastam-se
Choram
Gritam
Acenam timidamente
Mudam de calçada
Piscam os olhos
Disfarçam seus desejos reais

Ousam
Rebelam-se
Beijam-se
Atraem-se
Identificam-se iguais
Sentem-se perfeitos
Querem-se mais

Na cama
Conversam
Desabafam
A intimidade sentida
Na igualdade dos sexos
Na semelhança que os atraem

No próximo ato
Amam-se mais um pouco
Declaram frases ocultas
Banham-se de suor
E experimentam o gozo
Até gritarem de felicidade:
- Não somos culpados pelo nosso amor
Apenas somos iguais