Já faz muito tempo, lá pelas bandas do sertão da Bahia, havia um jovem
e zeloso Promotor de Justiça que, por força do ofício, envolveu-se numa trágica
contenda com um legítimo tabaréu, matuto mesmo, desses de arrancar toco à mão e
não se queixar, de pegar boi brabo à unha e sair ileso na parada, além de
outras tantas façanhas, dentre as quais a que ocorreu conforme se contará
nessas linhas.
Com
efeito, numa tarde calorenta e empoeirada na pequena cidade, panorama de dar
inveja a qualquer cenário daqueles vetustos filmes de faroeste dirigidos por
John Ford, eis que chega o nosso dileto protagonista na porta do fórum local,
Fórum Dr. não sei lá das quantas (em justíssima homenagem, ainda que póstuma, a
um ilustrado filho da terra, o eminente Dr. não sei lá das quantas), e de logo
se dirige ao modestíssimo gabinete do digno e novel representante do Ministério
Público, adentrando o recinto, logo após um ligeiro olhar de través para o seu
interior. Ao ser perguntado o que desejava, estendeu simploriamente, porém sem
maiores preocupações, a mão, entregando um sujo e amassado papel ao seu
interlocutor que, de imediato, mandou-o entrar:
___
Muito boa tarde senhor José da Silva.
___
Boa tarde, doutô.
___
Seu José, o senhor foi notificado a aqui
comparecer em virtude de uma queixa prestada contra a sua pessoa. O senhor,
naturalmente, já sabe do que se trata, não?
___
Num vá me dizer que é a enrolação com a
Cacilda...
___
Exatamente, seu José, é a respeito da
dita enrolação com a senhorita Cacilda, sim senhor. Aliás, seu José, embrulho
dos grandes, hein?!!
A
bem da verdade, enrolação maior havia se metido a pobre Cacilda. Coitadinha ...
15 anos, na flor da idade, primeiro namorado, primeiros sonhos, primeiros
beijos, conversa vai, conversa vem, neres de televisão, apertos ali, amassos
acolá e ... pimba!!! Deflorada, prelibadazinha da silva, sim senhor, sem outro
remédio, senão o casório.
Depois de um tremendo bafafá, após o evidente
e inevitável aumento de volume da precoce barriguinha, eis a confissão: “O Zé me fez mal, mãe: tô perdida sim senhora
e ele é o meu devedor.”
Da terrífica
revelação para a boca do povo foi um pulo (ainda mais que por ali havia pouco
povo). O infortunado pai, homem de pouco ânimo (piorado por aquele desastre),
jeito não tinha a dar: bater não ia, matar o infeliz, tampouco; se fosse por
bem, fazia com gosto o casamento, caso contrário, solução não tinha.
Eis
senão quando entra em cena a expedita genitora, senhora sanhuda nas redondezas,
que sentenciou: “Ou casa descarado ou vou
atrás dos direitos de minha filha, vou à Justiça.”
Não
casou o descarado, Promotor nele, portanto. Lá estava então o embrulhado
cidadão, a ouvir o provecto representante da lei:
___
Sedução, art. 217, Código Penal. Se casar
não tem processo, seu José: art. 107, inciso VII, do mesmo diploma legal,
entendeu?
____ Pra
falar a verdade, doutô, intendi bulufas. Muito número pra mim é uma
atrapalhação só, num consigo encacholar. Sedução? Pois o que é isso? Penal,
diproma legal? Piorô.
Depois
de tudo explicar, com a costumeira e inabalável paciência, a desvelada
autoridade concluiu, para um atônito José, que ele estava numa grandíssima
enrascadela. Só se safava com o matrimônio. Ou casava ou iria às barras da
Justiça. Pediu um tempo, uns dois ou três dias para esfriar a cabeça, pensar
nos prós e nos contras (mais nestes do que naqueles), conversar com a ofendida,
enfim matutar com as idéias.
Pois
bem. O tempo passou e decorrido o prazo acertado, volta o sedutor à Casa da
Justiça para prestar as devidas satisfações:
___
Doutô, tô com duas noites sem dormir;
pensei, repensei, pensei tanto que, desacostumado com tamanha pensação, vi a
hora da muriga pifar.
___
Então, Zé, já marcou a data?
___ Doutô,
num leve a má não, mas num vou casá de jeito manera. O sinhô haverá de me
descurpá, mas casá, num caso, nem morto. E digo outra coisa excelença, num é
prum mode a menina não sinhô. Dela até gosto e até me amarrava com ela, sem
sacrifiço: menina nova, o sinhô sabe acuma é, né; direita, honesta e fui eu
mermo o causador do estrago, isso eu num nego. Acuntece, doutô, que a mãe dela
não há fio de Deus que guente. Aquilo num é gente, tem é parte com o demo. O
que esta véia tem apruntado, a me desacatar, a me apurrinhar, é pra cristão
nenhum botá defeito. Se agora é assim, imagine depois de amarrado. Além de
casado, eu vou tá é morto. Cá o degas não vai nessa.
Não adiantaram os argumentos do bem
intencionado fiscal da lei. O José da Silva, o Zé, estava inteiramente
convicto. Com aquela sogra ele não se ajeitava em nenhuma hipótese. Sogra é
sogra: ou presta ou é uma desgraça na vida de um jovem consorte:
___ Desgraça
por desgraça, doutô, prefiro o processo ___ despediu-se.
Decepção
para o mancebo Promotor. Não havia solução amigável. Logo, requisita-se o
devido inquérito policial, depois, tome-lhe denúncia: dura lex, sed lex, aprendera ele. Falta de aviso e de boa vontade é
que não foi. Agora é ir para frente e ver se esse sedutor de meia tigela deixa
de ser teimoso. Onde já se viu: seduz a menina, 15 aninhos, e depois vem com
essa de que não gosta da mãe da moça (da ex-moça, aliás) e coisa e tal.
Tapiocano desabusado esse; quem já se viu, em frente a uma autoridade daquele
quilate eximir-se da obrigação de restaurar a honra da pobre moça. Deixe
estar!!!
Pouco
tempo se passou, uns cinco ou seis dias, inquérito policial já em andamento, e
lá estava o membro do parquet em sua
singela sala de trabalho quando surge inopinadamente o Delegado de Polícia e o
José da Silva, este, para a surpresa do digno Promotor, algemado, preso.
___
Excelência ___ disse a circunspecta
autoridade policial, o homem acaba de
matar a mãe da jovem Cacilda: dois tiros certeiros com uma velha cu-de-boi.
Morte imediata. Já encaminhei para o Nina Rodrigues.
Estupefato,
o assustado Promotor tentava compreender a tragédia, quando foi interrompido
pelo homicida, numa bravata:
___
Doutô, o negócio é esse: processo por
processo, prefiro este; pode marcar a data do casório. Ah, e o sinhô é o
padrinho, querendo é craro.