O amor não tem orientação sexual. Pensou nessa afirmação como
quem abraça as bordas do mundo. Os anjos não têm sexos. Lembrou-se dessa frase
como quem aprecia “a sorte de um amor
tranquilo com sabor de fruta mordida”. Queria dizer, e disse reinventando aquele
clichê, que o amor revela todas as orientações sexuais possíveis, inclusive as
que surgirão. Era ideia certa isso. Afinal, dois homens se beijaram na porta de
entrada do universo XXI. Beijo de canto de boca, com a língua recolhida na discrição.
Mas era um beijo entre iguais igualmente a um beijo entre diferentes. Viu também que, devido a essa novidade
greco-romana, a fanfarra abriu o desfile mais cedo. E o bloco dos mascarados
foi surpreendido com fantasias de carne e osso, se exibindo na Avenida dos anos,
em plena luz do dia, com semblantes reais. Nada a esconder. Não havia porquês. Nova
Era. Foi o que o jornal da manhã logo cedinho publicou.
Três
mulheres, vestidas de colegiais, fizeram uma ciranda de toques. Rodavam,
rodavam, rodavam e, na tontura desejada, sentiram os peitos- seus peitos-
eriçados de uma adrenalina lubrificante. Quase se conheceram. Como estavam de costas, um morador que descia as
escadas não percebeu a cena. Comentou lá embaixo: - há três meninas
brincalhonas no 5º andar. Enquanto isso,
gargalhadas vinham do terraço, onde as parabólicas serviam de hastes para
estender a linha do tempo à rede do Universo Paralelo, onde as antigas mães
daquelas moças quase entendidas conversavam
ardentemente, experimentando uma na língua da outra a bebida mais quente da
grande Onda: o prazer. E faziam isso na moral, na limpeza, sem externalidades
libertadoras, já que o programa Tolerância Zero não tinha sido autorizado pelo
Governo. Foi o que o Pasquim da esquina
divulgou na página Cotidiano.
A
gente humilde ficou espantada com a notícia. A classe média envaideceu-se ao
saber que isso era real. Não fazia parte de um capítulo de minissérie. Que
estava sendo protagonista de jornais avulsos, degustada por leitores de
diversas ordens morais. Os tarados reclamaram: isso lá é coisa que se publique!
Notícia velha, porra! Os abonados foram previsíveis: reuniram-se às 17:00h para
debater a notícia sob os fundamentos do Darwinismo Social.
O estardalhaço coube à mídia internacional. Le monde, New York Times e a BBC News depositaram a verdade nas capas.
Foram tão objetivos que fizeram pouco caso da exclamação. Anunciaram: “transexual da década de 30 se torna famoso
por prever que no século XXI a humanidade seria reconhecida pelo formato de seu
Desejo.” Para a tropicália, nenhuma novidade; desde essa época eles - eles
mesmos, sim são eles sim, eles mesmos - se perguntavam: “Eu sou neguinha?”.
O
menino escuro estampado na capa do Populacho
agradeceu pelo dia de boas vendas. Podia ser visto por muita gente. A fama
tinha fornicado sua alma com glória infernal. O menino escuro da banca “Ponto
de Referência” também rendeu Graças ao dia – Aleluia, Aleluia, imitando sua
cliente religiosa. O almoço estava garantido.
No
fim da manhã, ele, o personagem vivo das notícias lidas, o metalingüista profissional,
que começou a leitura diária com afirmações sexuais inconvenientes sobre o
amor, resolveu dobrar os jornais e, antes de sair da Internet, enviar algumas
frases para o espaço dedicado ao Leitor. Pensou também em escrever uma carta de
demissão. Mas para quem? Estava aposentado. Ainda assim insistiu por sete
minutos nessa ideia. Para ele, a carta seria uma bela forma de expressar sua
revolta. Seria como desenrolar espontaneamente aquele mal de infância chamado
de língua presa.
Cansado
de ler, sentiu que o tempo havia passado. Olhou para a xícara que estava no
braço da poltrona e resmungou: merdaaaa, café frio não presta! Quando ia se
levantar, uma pergunta colou-lhe a bunda no estofado e, antes que a esposa
ouvisse seu segredo, se confessou para o espelho da mobília próxima: Qual a
igualdade me perturba mais? Eu e um conhecido ou Eu e a turba bárbara que “pela lente do amor não pode enxergar toda
moça em todo rapaz ou vice-versa”?
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