sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

NA POLTRONA




O amor não tem orientação sexual. Pensou nessa afirmação como quem abraça as bordas do mundo. Os anjos não têm sexos. Lembrou-se dessa frase como quem aprecia “a sorte de um amor tranquilo com sabor de fruta mordida”. Queria dizer, e disse reinventando aquele clichê, que o amor revela todas as orientações sexuais possíveis, inclusive as que surgirão. Era ideia certa isso. Afinal, dois homens se beijaram na porta de entrada do universo XXI. Beijo de canto de boca, com a língua recolhida na discrição. Mas era um beijo entre iguais igualmente a um beijo entre diferentes.  Viu também que, devido a essa novidade greco-romana, a fanfarra abriu o desfile mais cedo. E o bloco dos mascarados foi surpreendido com fantasias de carne e osso, se exibindo na Avenida dos anos, em plena luz do dia, com semblantes reais. Nada a esconder. Não havia porquês. Nova Era. Foi o que o jornal da manhã logo cedinho publicou.

Três mulheres, vestidas de colegiais, fizeram uma ciranda de toques. Rodavam, rodavam, rodavam e, na tontura desejada, sentiram os peitos- seus peitos- eriçados de uma adrenalina lubrificante. Quase se conheceram. Como estavam de costas, um morador que descia as escadas não percebeu a cena. Comentou lá embaixo: - há três meninas brincalhonas no 5º andar.  Enquanto isso, gargalhadas vinham do terraço, onde as parabólicas serviam de hastes para estender a linha do tempo à rede do Universo Paralelo, onde as antigas mães daquelas moças quase entendidas conversavam ardentemente, experimentando uma na língua da outra a bebida mais quente da grande Onda: o prazer. E faziam isso na moral, na limpeza, sem externalidades libertadoras, já que o programa Tolerância Zero não tinha sido autorizado pelo Governo. Foi o que o Pasquim da esquina divulgou na página Cotidiano.

A gente humilde ficou espantada com a notícia. A classe média envaideceu-se ao saber que isso era real. Não fazia parte de um capítulo de minissérie. Que estava sendo protagonista de jornais avulsos, degustada por leitores de diversas ordens morais. Os tarados reclamaram: isso lá é coisa que se publique! Notícia velha, porra! Os abonados foram previsíveis: reuniram-se às 17:00h para debater a notícia sob os fundamentos do Darwinismo Social.

 O estardalhaço coube à mídia internacional. Le monde, New York Times e a BBC News depositaram a verdade nas capas. Foram tão objetivos que fizeram pouco caso da exclamação. Anunciaram: “transexual da década de 30 se torna famoso por prever que no século XXI a humanidade seria reconhecida pelo formato de seu Desejo.” Para a tropicália, nenhuma novidade; desde essa época eles - eles mesmos, sim são eles sim, eles mesmos - se perguntavam: “Eu sou neguinha?”.
O menino escuro estampado na capa do Populacho agradeceu pelo dia de boas vendas. Podia ser visto por muita gente. A fama tinha fornicado sua alma com glória infernal. O menino escuro da banca “Ponto de Referência” também rendeu Graças ao dia – Aleluia, Aleluia, imitando sua cliente religiosa. O almoço estava garantido.

No fim da manhã, ele, o personagem vivo das notícias lidas, o metalingüista profissional, que começou a leitura diária com afirmações sexuais inconvenientes sobre o amor, resolveu dobrar os jornais e, antes de sair da Internet, enviar algumas frases para o espaço dedicado ao Leitor. Pensou também em escrever uma carta de demissão. Mas para quem? Estava aposentado. Ainda assim insistiu por sete minutos nessa ideia. Para ele, a carta seria uma bela forma de expressar sua revolta. Seria como desenrolar espontaneamente aquele mal de infância chamado de língua presa.

Cansado de ler, sentiu que o tempo havia passado. Olhou para a xícara que estava no braço da poltrona e resmungou: merdaaaa, café frio não presta! Quando ia se levantar, uma pergunta colou-lhe a bunda no estofado e, antes que a esposa ouvisse seu segredo, se confessou para o espelho da mobília próxima: Qual a igualdade me perturba mais? Eu e um conhecido ou Eu e a turba bárbara que “pela lente do amor não pode enxergar toda moça em todo rapaz ou vice-versa”

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