terça-feira, 21 de maio de 2013

A PECAMINOSA DE N. 37




Embora a boa lição constitucional ministrada pelos constitucionalistas do país ensine que é proibido retroceder em matéria de garantias e direitos fundamentais, fica difícil compreendê-la ante o péssimo espetáculo a que se assiste no Congresso Nacional, identificado pelo egoístico e repugnante ataque ao poder investigatório do Ministério Público e, por efeito dominó, a todas as demais instituições chamadas de democráticas.
E o povo? O povo continua, nessa caríssima história de manipulações de poder, sendo aquele personagem que figura no parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal, que diz que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente nos termos desta Constituição.”
Se ainda não houve razões para acreditar que o povo tem sido um grande figurante no suposto regime democrático que se divulga nos espaços jurídico, legislativo e executivo, a arquitetada investida contra o poder investigatório do Ministério Público, proveniente de representantes do titular desse poder popular, exemplifica como, ao mesmo tempo, o povo pode servir de justificativa axiológica para argumentos paradoxos.
Os que defendem a proposta de emenda constitucional n. 37/2011 afirmam que sua aprovação será melhor para o povo, aprimorando a qualidade da investigação criminal. Os que são contrários batem os pés, sacudindo toda a poeira dos milhões de inquéritos policiais inconclusos nas delegacias de polícia, sustentando que a não aprovação da PEC 37 será melhor para o povo, que já não aguenta mais tanta impunidade. A diferença é que esses últimos, nos seus argumentos, estão em conformidade com a Constituição.
Mas onde está o povo para decidir o papel que quer interpretar? Quantos compareceram à mobilização nacional contra a PEC 37 realizada no dia 24 de abril de 2013 em Brasília? Os dados se perderam. Literalmente, os dados se perderam e estão sendo jogados por uma única mão.
No espaço virtual, o compartilhamento de links contra a PEC 37 tem sido diário. Opiniões consagradíssimas sobre o assunto possuem vida própria na internet. Parabéns ao acesso em rede, ao compartilhamento de informações e aos cientistas da tecnologia. Mas a mobilização virtual é um complemento à mobilização presencial, e de forma alguma a substitui.  Os movimentos sociais não seriam movimentos sociais se ficassem apenas no ambiente cibernético. 
A PEC 37 é assustadora, tenebrosa e pecaminosa. Viola a ideia em si de Constituição. O Poder Constituinte Derivado Reformador, a quem cabe, através de emendas, aproximar as normas constitucionais da vivência social, tudo não pode. Possui limitações explícitas e outras que decorrem do próprio sistema constitucional. O Ministério Público é um direito fundamental do cidadão, que deve pensar assim: “eu tenho o impagável direito a uma instituição que defenda os interesses sociais e individuais indisponíveis.”
A PEC 37 é resultado de uma péssima interpretação de como deve atuar o Poder Constituinte Derivado, que, ao que parece, a todo custo, inclusive o de haver mais impunidade, quer restringir uma das atribuições institucionais do Ministério Público. O inciso IX da CF/88 bem recorda que cabe ao Ministério Público exercer outras funções que forem compatíveis com sua finalidade. A investigação criminal direta pelo Ministério Público, e isso já se sabe de há muito, é algo que corre nas veias institucionais. É do normal combate de quem sempre foi conhecido por atuar veementemente nos tribunais do júri do país, embora sua atuação não se reduza a esse ponto.
Portanto, a aberração da proposta de emenda constitucional n. 37 se dá ao tentar abolir, restringir o direito fundamental, estabelecido desde 1988, de se ter uma investigação criminal direta pelo Ministério Público. Isso é um pecado capital! Todos os direitos e garantias fundamentais previstos ou não no art. 5º da Constituição Federal necessariamente dependem de estruturas constitucionais que possam promovê-los. O Ministério Público, estabelecido minimamente no art. 127 da Constituição Federal, é uma delas, e por isso traz a essência fundamental de todos os direitos humanos inscritos naquele artigo. Restringir ou eliminar qualquer uma de suas atribuições constitucionais é restringir ou eliminar direitos fundamentais.
Seguindo essa lógica, a PEC 37 sequer deve ser objeto de deliberação. É o que impõe o art. 60,§4º, inciso IV, da Constituição Federal.  Registre-se também que a  iniciativa de um grupo de trabalho técnico para aperfeiçoar a PEC 37, integrada por quatro representantes do Ministério Público, quatro representantes da polícia, dois do Senado, dois  da Câmara de Deputados e um do Ministério da Justiça, aplaudida por muitos,  precisa ser analisada com bastante cuidado, pois pode-se estar legitimando, por vias aparentemente consensuais, a negociação do inegociável: a  investigação criminal pelo Ministério Público.
Não se defende aqui uma postura de guerrilha, terrorista ou de não diálogo. A perspectiva é outra, de constatação dos passos que estão sendo dados na resolução da questão. Há um caminho sinuoso e escorregadio ao se querer discutir formalmente um aperfeiçoamento de uma emenda constitucional que sequer pode ser objeto de deliberação; de aperfeiçoar uma proposta que visa restringir a atribuição de uma instituição eminentemente constitucional: o Ministério Público. É inconcebível a aprovação da PEC 37, e, pela mesma razão, inadmissível seu trâmite ou qualquer tentativa de, sob a rubrica de texto renovado, viabilizar sua aprovação.
Ao Ministério Público cabe promover a ação penal pública na forma da lei. Hoje essa é uma atribuição institucional fincada no texto da Norma Maior (art. 129, inciso I) e, muitas vezes, repetida nas faculdades de Direito sem o peso histórico que carrega. O cidadão já internalizou essa atividade ministerial. Talvez ainda não tenha percebido, com olhos arregalados, a perda e o retrocesso histórico, uma espécie mesmo de atavismo, que pode representar a aprovação da PEC 37.
O momento ainda permite sua aproximação a essa tema, que, mesmo sem se dar conta, bate à sua porta quando começa uma briga na vizinhança ou seu filho passa a consumir drogas ou trabalhar para o traficante da região, e o faz pensar: a quem devo recorrer nessas circunstâncias?
A PEC 37, conhecida como PEC DA IMPUNIDADE,  justamente porque pode impedir que outros órgãos, além do Ministério Público, realizem investigações , como a Receita Federal, a COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), o TCU (Tribunal de Contas da União), as CPIs (Comissões Parlamentares de Inquérito), entre outros, estabelece que “a apuração das infrações penais de que tratam os §§ 1ºe  4º do art. 144 da CF/88 incubem privativamente às polícias federal e civis dos Estados e do Distrito Federal, respectivamente.”
Por sua vez, a PEC 33, entre outros desastres, condiciona o efeito vinculante de súmulas aprovadas pelo Supremo Tribunal Federal à aprovação pelo Poder Legislativo e submete ao Congresso Nacional a decisão sobre a inconstitucionalidade de Emendas à Constituição.
Alguns humoristas arriscam piadas do tipo: PEC 33 + PEC 37= AI-5 - uma alusão ao ato institucional n. 5 da época da ditadura militar brasileira. Sorrisos à parte, é provável que, no ritmo e formato em que emendas constitucionais estão sendo propostas, a Constituição tenha uma data certa e próxima para o término da sua vigência, o que, sem dúvidas, será proposto por uma nova emenda (in) constitucional. Nesse cenário de loucuras legislativas, o surrealismo jurídico retoma sua força, mostrando que realidade e loucura já não andam tão distantes.
Curiosamente, nos últimos dias, a Argentina, através de questionáveis propostas de reforma do Judiciário (reformas nos chamados Conselhos da Magistratura, criação de três novas câmaras de cassação judicial e a imposição de novos limites para recursos), também se enfileirou entre os países que querem exercer um controle desproporcional sobre o Poder Judiciário. Lá, porém, a reação social foi mais calorosa. Aqui, um estado de compreensão diferenciado paira sobre a aura da sociedade em relação a essas iniciativas legislativas que desequilibram a comunicação existente entres os poderes instituídos. Que não seja uma tendência da famosa pós-modernidade!
A PEC 37 e a PEC 33 exalam odores pecaminosos, não no sentido religioso da palavra, mas como algo que surge na contramão da ordem natural das coisas, que é o evoluir da Constituição. As propostas de emenda, símbolos de atualização do texto constitucional, transformaram-se em descaminhos, em desfuncionalizações do poder constituinte derivado. PECs como estas reforçam a ideia de que “o pecado mora ao lado” e a sensação de que, como concluiu o filme Tropa de Elite 2, “o inimigo agora é outro.”  É ou sempre foi?
Fica a reflexão: ser contra a PEC 37 não significa ser contrário à polícia e favorável ao Ministério Público. A questão ultrapassa o círculo ideológico corporativista, mesmo sem desconsiderá-lo. Ser contra a PEC 37 é ser, em todas as análises possíveis sobre o tema, a favor da Constituição.

  

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:Senado Federal, 1988.

CHAVES, Cristiano (Coord.); ALVES, Leonardo Barreto Moreira (Coord.); ROSENVALD, Nelson (Coord.). Temas atuais do Ministério Público: a atuação do parquet nos 20 anos da constituição federal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010.

JR. DA CUNHA, Dirley. Curso de Direito Constitucional. 4ª ed, Bahia: Editora Juspodivm, 2010.

Brasil contra a impunidade! Disponível em: <http://www.mpba.mp.br/eventos/2013/marco/brasilcontraimpunidade/index.html>. Acesso em 11maio 2013.

Brasil contra a impunidade! Disponível em: <http://www.mp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=4889>.Acesso em 11 maio 2013

Um comentário:

Rafael Cita disse...

Excelente percepção, Dr. Saulo. Dentre outras deturpações sobre o tema, há quem queira institucionalizar o debate, como se Polícia e Ministério Público estivessem em conflito, o que não é verdade.
Na democracia, as instituições não se chocam, complementam-se.